O que explica a bizarra resiliência de Bolsonaro, que se expressou nos 51 milhões de votos que conquistou em 2 de Outubro de 2022, recolocando no baralho a carta sinistra de uma improvável mas não impossível re-eleição do troglodita que hoje ocupa ilegalmente a presidência da república?
Como entender a adesão em massa de mais de 43% do eleitorado nacional ao genocida, idólatra de torturador, saudosista dos anos de chumbo da ditadura e notório misógino-racista-homofóbico?
Como pode um troço desses, apesar dos 700.000 mortos na pandemia diretamente conectados à criminosa irresponsabilidade do Capitão Cloroquina? Como pode isso, apesar dos 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave devido ao desgoverno e sua desastrosa condução econômica neoliberal-fundamentalista à la Pinochet guiada por Guedes?
Como pode, apesar dos inúmeros crimes de corrupção revelados na gestão Milton Ribeiro no MEC, no Ministério da Saúde sob Pazuello, na familícia que paga imóvel em dinheiro vivo pois foi sanguessuga de recursos públicos através de rachadinhas, laranjas e outras falcatruas?
Parte essencial da resposta, estou convicto, passa pelo fanatismo religioso e pela lavagem cerebral que vem sendo praticada sobretudo nas igrejas evangélicas neo-pentecostais. Inúmeras reportagens – na Folha de S. Paulo, na BBC, no Lavra Palavra etc. – tem apontado que houve um “tsunami bolsonarista” nos espaços onde a Teologia da Prosperidade celebra suas núpcias sinistras com o Cristofascismo numa assustadora orgia de mentira e fúria.
O artigo de Anna Virginia Balloussier na Folha coletou uma ampla gama de exemplos para ilustrar o obscurantismo tecnofeudal que nos assolou nesta eleição: “Nas redes sociais, sem as amarras de uma legislação eleitoral que proíbe o uso do púlpito para defender candidatos, líderes e influencers evangélicos abraçaram o bolsonarismo sem timidez.” (BALLOUSSIER: 2022)
Na BBC, a jornalista Julia Braun – que investigou as fake news feitas sob medida para a platéia evangélica – conversou logo após a eleição de Outubro de 2022 com “a brasilianista e cientista política americana Amy Erica Smith, da Universidade Estadual de Iowa”, que também especulou sobre o tema:
“É possível que a campanha dentro das igrejas ou nas redes sociais direcionada aos fiéis evangélicos tenha tido um papel relevante nos resultados”, diz a professora, que é autora do livro Religion and Brazilian Democracy: Mobilizing the People of God (Religião e Democracia Brasileira: Mobilizando o Povo de Deus, em tradução literal).
(…) Os evangélicos correspondem a cerca de 25% da população brasileira, de acordo com pesquisas de intenção de voto do Ipec. Na opinião da cientista política, Lula ainda é favorito no segundo turno, mas a também ampla base de apoio de Bolsonaro pode representar problemas para o petista. “O cenário atual é justamente o que Lula queria evitar”, diz. “Muitas pessoas já diziam que se os resultados [dos dois candidatos] fossem próximos, seria mais fácil para Bolsonaro dizer que as eleições foram fraudadas. O fato das pesquisas terem subestimado o apoio a ele pode fortalecer esse discurso.” Reportagem da BBC Brasil mostrou que o mandatário já atacou o sistema de votação mais de 100 vezes. Durante a maior parte do seu mandato e da corrida eleitoral, Bolsonaro levantou dúvidas, sem apresentar evidências, de que a urna eletrônica não seria à prova de fraudes.”
A autora escreve também, em seu artigo Covid vs. Democracy: Brazil’s Populist Playbook (Journal of Democracy, Oct. 2020. Acesse aqui.), com estarrecimento sobre as consequências trágicas do “fracasso de Bolsonaro em seguir a orientação em prol da saúde pública”:
“The pandemic has furthered societal polarization and encouraged citizens to interpret even information on matters of immediate personal health through partisan filters.”
Restam poucas dúvidas, diante de tal tonelada de evidências: um enxame de pastores e pastoras trambiqueiros, inescrupulosos, sem pudores de mentir, vem pregando que o petismo é uma encarnação do Capeta e que Lula é um praticante de satanismo. Descrevem a vitória do PT nas eleições presidenciais como a chegada do Armagedon. Criam pânicos morais através de fake news tão estapafúrdias e inacreditáveis – o PT vai fechar igrejas, obrigar as crianças a usarem banheiros unisex, e vai até excluir o nome de Jesus da Bíblia (rs). A “lógica” que presidiu a mamadeira de piroca e do kit gay está de volta – com esteróides. É estarrecedor pensar no grau de indigência intelectual, analfabetismo político, sectarismo de “bolha” e colapso da faculdade do juízo ético capaz de levar tantos pacatos cidadãos a crer nessa demonização.
A construção de Bozo e Micheque como “pessoas de Deus” tem levado milhões a digitarem 22 nas urnas – apesar das atitudes do bolsonarismo terem pouco ou nada a ver com o ágape cristão ou o sermão da montanha. O Jesus construído para ser idolatrado no campo bolsonarista tem um excelente apelido: JesUstra. E a onda da qual participa este bagulho, a tendência geral onde se insere este culto tenebroso em específico, é o cristofascismo. Sob o pretexto de poupar a sacrossanta “fé” muitos de nós se calam diante deste lodaçal grotesco em que uma vertente hegemônica do neopentecostalismo afunda o debate público e as escolhas cívicas num Brasil cada vez mais parecido com Gilead (a distopia de Atwood em O Conto da Aia).
No Brasil, Fábio Py escreveu um livro sobre o tema chamado Pandemia Cristofascista, parte da série Contágios Infernais da Editora Recriar – e que pode ser baixado gratuitamente. Em entrevista ao IHU, o pesquisador afirmou que “o modelo de governança do presidente Bolsonaro é sustentado pelo fundamentalismo religioso”. (Leia aqui uma resenha do livro)
A isto soma-se o cenário catastrófico de violência intolerante e religiosamente motivada contra os praticantes de religiões de matriz africana – como tem sido revelado por excelentes trabalhos de reportagem investigativa como A Nova Batalha de Xangô. O antropólogo Risério escreve uma síntese disso em Piseagrama:
“O candomblé experimenta hoje, simultaneamente, o forte sabor da vitória e o gosto amargo da derrota. Bola inflada no campo da elite política cultural; bola murchando na várzea popular. Assistimos a uma grande e predatória ofensiva neopentecostalista, agredindo terreiros, atacando a feitiçaria, promovendo exorcismos en masse e para as massas, em grotescos espetáculos televisuais.
Operando como ímãs em meio à classe média e, sobretudo, às classes populares. Sugando devotos dos templos católicos, desviando adeptos das tendas dos pretos-velhos, drenando gente dos terreiros.
Nunca o panorama religioso brasileiro tinha sido tumultuado de tal forma. Nunca a cena tinha sido tomada, e com tanta rudeza, por uma gente que não faz ideia do que sejam coisas como tolerância e cordialidade.” (RISÉRIO)
Dito isso, deixo uma provocação à esquerda que pensa poder vencer esta batalha apenas com good vibes e “esperançar”, cantando em ciranda o “andar com fé eu vou que a fé não costuma faiá” de Gilberto Gil. Adoro este nosso genial artista popular brasileiro, mas esta sua canção comporta certos perigos, como o de absolutizar a benignidade da fé, considerada em abstrato, paralisando nosso senso crítico diante das manifestações nefastas e maléficas da fé (que não são poucas). Lamento dizer, mas a fé tem se mostrado muito falha: gerando cegueira, fanatismo, dogmatismo, cruzadas morais violentas, adesão massiva a um líder fascista. Será mesmo que podemos deixar quieto e nos esquivar do enfrentamento em relação à problemática neopentecostal no Brasil?
Com o pretexto de “respeitar a fé alheia”, vamos nos calar diante desta enxurrada de crimes eleitorais e lavagens cerebrais que se faz “em nome de Deus”? Vamos calar consentindo para não ofender as crenças alheias? Não será preciso de nós uma postura mais aguerrida, uma crítica mais explícita, e movimentos sociais mais ativos na defesa do Estado laico e na superação do fundamentalismo cristofacista que cada vez mais se imiscui nos assuntos públicos no Brasil?
Bob Dylan já cantava, nos anos 1960: “você não conta os mortos quando Deus está do seu lado.” Será que há estratégia eleitoral eficaz para a eleição de Lula em 2º turno que simplesmente ignore o perigo cristofascista, o fundamentalismo neopentecostal, e o uso da credulidade popular para fins espúrios como têm feito a extrema-direita?
Se partirmos do pressuposto que “a fé” é do Bem e a “descrença” é do Mal, já estamos fazendo o jogo do inimigo e fortalecendo um estado de espírito crédulo e servil, avesso ao senso crítico, fóbico da diversidade de perspectivas, que faz parte do espesso caldo cultural que empoderou o bolsonarismo. Precisamos falar da monstruosidade de certas fés que idolatram facínoras e demonizam o adversário.
Na tirinha de Mauro Iasi, reproduzida acima, ocorre o que fico tentado a chamar de uma demonização reversa. Entrega-se ao inimigo bolsonarista uma dose de seu próprio veneno: se eles demonizam Lula, nós demonizamos Bolsonaro. Neste entrechoque de demonizações, muitos de nós, na esquerda mais “aguerrida”, embarcamos até mesmo para dar vazão à nossa indignação: Manuela D’Ávila, por exemplo, esteve referindo-se ao inominável – que o movimento Ele Não chamava de Coiso – como Capiroto.
A eficácia desta estratégia é duvidosa, mas parece-me defensável em certa medida: que o feitiço se volte contra o feiticeiro, e que nós possamos brincar e satirizar sim, apontando através do humor e do escárnio o quanto Jair Bolsonaro é apenas um oportunista diabólico e que, caso Céu e Inferno existissem, certamente queimaria no segundo por seus crimes de genocida, ecocida e contumaz racista, misógino e homofóbico.
Se levarmos a sério o paradoxo de Popper mas também as lições de Voltaire em seu Tratado Sobre a Tolerância, podemos concluir que não devemos tolerar os intolerantes. Quando eles não toleram nosso humor, nossa crítica, nosso sarcasmo – quando alguém sai atirando contra os cartunistas do Charlie Hebdo, por ex., por sentir-se ofendido diante de caricaturas de Maomé, ou quando alguém tenta matar Salman Rushdie a facadas por ser ímpio – aí eles caem na criminalidade. Cometem o delito do cancelamento violento da expressão e da vida do outro, o aniquilamento da alteridade e da diversidade que é inaceitável.
Neste sentido, insurgir-se pela linguagem e pela crítica contras as religiões instituídas que constituem consolidados sistemas de opressão é legítimo, urgente e necessário. O escracho pode ser ético. A pedrada crítica pode ser politicamente progressista muito mais do que o silêncio conivente dos pseudo-neutros.
Porém, para além das estratégias do escracho e crítica que integram nossa guerra cultural, penso ser necessário encarar um monstro da economia-política mancomunada com a ideologia ultra-capitalista/necro-liberal que é a teologia da prosperidade. No Jornal GGN, o artigo “Da Revolução Francesa à Revolução Evangélica”, de Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva, aponta:
“Muitas dessas igrejas induzem o fiel a entender o dízimo como investimento num pretenso sucesso futuro, transformando em unidades monetárias a graça a que Calvino se referia. Cristaliza-se a ideia de que todos nascem com as mesmas oportunidades e, caso se dediquem o suficiente, poderão chegar ao mesmo resultado econômico. Se o sucesso não vier, a culpa será sempre do indivíduo, que não se terá esforçado o suficiente. O resultado disso é o enaltecimento do individualismo, da divisão da sociedade entre ganhadores e perdedores, como se, ao contrário do que prega a Teologia da Libertação, os seres humanos devessem viver numa eterna competição. Disso deriva a ideia de que a economia seja redimida pela competição, ou seja, que todos os mercados possam atingir a máxima eficiência pelo fato de os participantes competirem entre si. O fato de os mercados conterem barreiras de entrada e custo de abandono fica para o segundo plano, quando não se adota a negação como argumento.”
Dentre as entidades da mídia brasileira, a Agência Pública – sobretudo através dos artigos de Andrea Dip – e o Le Monde Diplomatique têm se devotado também à investigação do tema. Neste último, Paulo Ferrareze escreveu:
“É sabido que a potência do púlpito ajudou a eleger Bolsonaro. E também é sabido como isso fortaleceu pautas pouco laicas no Congresso nesses quatro anos de miséria na mesa, no bolso e na imaginação. (…) Na distopia brasileira, instalada a ditadura evangélica, as rádios tocarão música de louvor 24h por dia. E vão denunciar Chico Buarque como satanista. E Alcione como bruxa. E fustigar os livros seculares. E violentar para negar o aborto. E pregar a paz com armas. E fumegar babaquices ou disparos entre seus medos e ilusões.”
O cinema brasileiro, antenado a tais tendências cristofascistas, tem se dedicado a uma investigação artística impressionante através de obras como Medusa, Divino Amor e Fé e Fúria.
Tendências demográficas indicam que em meados da década de 2030, é possível que os evangélicos ultrapassem os católicos e tornem-se a seita cristã majoritária do país. Resta saber se saberemos, enquanto sociedade, superar a estagnação desastrosa nos dogmas da teologia da prosperidade e a idolatria sádico-perversa a messias facínoras como Bolsonaros e JesUstras. Resta saber se construiremos alguma renascença da entre nós tão combalida Teologia da Libertação. Seríamos de fato um Brasil bem melhor se Boff, Frei Betto e Henrique Vieira (dentre outros) é que tivessem mais potência sobre a consciência das massas do que charlatões milionários como Edir Macedo, Malafaia e Feliciano.
Falar hoje na coragem da descrença, na ousadia da lucidez ateia, na necessidade de enxergar com clarividência para além das ilusões religiosas que nos cegam, é o bastante para que uma horda de fanáticos acenda fogueiras, dispare denúncias no Zapistão e nos acusem de “cristofobia”. Até mesmo por isso é preciso que levantemos a voz – ateus, agnósticos, céticos, livres-pensadores, espíritos livres arredios a todas as correntes do dogmatismo e do conformismo – para que ousemos criticar juntos a atual prepotência todo-poderosista dos cristofascistas. E para que ousemos pensar juntos sobre estratégicas e ações para combatê-los em sua intolerância e perversidade sectária.
Enquanto deixarmos quieto e nos calarmos consentindo, o império da mentira, da enganação e do fanatismo prosperará. Enquanto o conceito de credulidade estiver ausente do debate sobre desinformação e pós-verdade, o império dos produtores de crenças nefastas seguirá inconteste. Poderíamos dizer, provocativamente, que se uma multidão tão gigantesca é capaz de acreditar no mentiroso contumaz Jair Genocida Bolsonaro, e até mesmo chegar ao escárnio supremo de considerá-lo “sincero” e “autêntico” quando ele mente com tanta frequência e regularidade que se tivesse o nariz de Pinóquio este já estaria batendo na Lua, é devido a uma (de)formação religiosa prévia. Quem a vida inteira foi subornado e ameaçado para acreditar no Papai-do-Céu pode mais facilmente ser colocado entre as hostes de subservientes ao tirano na terra.
Desde o berço, ensina-se o sujeito criado sob hegemonia cultural da fé a crer no Deus-Pai, no Patrão cósmico, no Fodão universal. E se lança contra os comportamentos desviantes a ameaça do Inferno, assim como se suborna em prol dos comportamentos “de cidadão de bem” com a promessa do Céu. Este esquema ético baseado em ameaça-recompensa, em chicote e torrão de açúcar, infantiliza o sujeito e faz estagnar o amadurecimento do senso crítico, da autonomia racional, da eticidade necessária à ação política madura.
A fé com frequência ilude, sacrifica o intelecto e serve aos senhores da terra enquanto intimida o sujeito em relação a potências transcendentes que talvez não existam fora das imaginações humanas e dos artefatos culturais demasiado humanos onde pintam-se, bordam-se e cantam-se os feitos de anjos, demônios, deuses e o escambau. Quando a fé fomenta o fascismo, andar sem fé e na contra corrente desta é o único caminho digno para os que amam de fato a liberdade, a autonomia e o pleno florescimento de seres humanos que busquem agarremra flor viva da Vida ao invés de se anestesiarem, catatônicos e cegos por escolha própria, com o ópio fajuto de uma vida fantasiada e invivenciável. Quando a fé fomenta o fascismo, não há libertação que não passe por uma ruptura com esta fé nefasta e por uma coragem coletiva de superá-la.
Por Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro – 04/10/22
REFERÊNCIAS
BALLOUSSIER, Anna V. Guerreiros da oração’ provocam tsunami bolsonarista nas igrejas evangélicas. Folha De S. Paulo, 03/10/2022. Acesse aqui. A autora também é colaboradora da Revista Piauí.
BRAUN, Julia. Campanha de última hora dentro de igrejas evangélicas pode ter ampliado votos de Bolsonaro, diz cientista política americana. Acesse aqui. A autora também fez este vídeo pertinente sobre o tema.
ERICA SMITH, Amy. Covid vs. Democracy: Brazil’s Populist Playbook. Journal of Democracy, Oct. 2020. Acesse aqui.
FERRAREZE, Paulo. Os evangélicos vão dominar o Brasil. Le Monde Diplomatique, 18/07/2022. Acesse aqui.
MELCHERT DE CARVALHO E SILVA, Luiz ALberto. Da Revolução Francesa à Revolução Evangélica. Jornal GGN, 2002.
PY, Fábio. Pandemia Cristofacista. Ed. Recriar.
RISÉRIO, Antonio. A religião que não tolera vizinhos. Revista Piseagrama. Acesse aqui.
Na foto de abertura: Bolsonaro faz arminha na Marcha Para Jesus.
APRECIE TAMBÉM:
Publicado em: 04/10/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia